O primeiro místico e o primeiro cientista foram uma
mesma pessoa, um Homo sapiens qualquer que, olhando
para o céu noturno há 30.000 anos, viu a lua cheia e se
4 - encheu de devoção e conjecturas. Partes diferentes de seu
cérebro processaram à sua maneira a informação visual
captada pelos olhos. Uma delas, o lobo temporal, registrou
7 - aquela luz pálida emanada de um disco que parecia flutuar
no espaço como uma experiência sublime, inexplicável,
superior, poderosa, acachapante, religiosa. Ao mesmo
10 - tempo, outras regiões do cérebro tentavam avaliar se
aquele objeto luminoso oferecia algum perigo, se podia
despencar causando dano, se era comestível, se sua
13 - aparição na abóbada celeste se repetiria ou se poderia ser
relacionada com algum outro fenômeno, como a escassez
ou a abundância de caça. Como sugeriu poeticamente o
16 - astrônomo francês Guillaume Bigourdan (1851-1932), o
último Homo sapiens do planeta será talvez surpreendido
pela morte quando, entretido com a mesma lua cheia —
19 - por maiores que sejam sua educação e seu treino científico,
mais exata sua noção de tamanho, das distâncias e dos
formatos das órbitas —, ela lhe parecerá sublime,
22 - inexplicável, superior, poderosa, acachapante, religiosa.
Disse Bigourdan: “Isso é do homem. Contar lunações,
medir órbitas, calcular frequências, mas se prostrar
25 - extático diante da imensidão do universo”.
Por muitas eras o lado místico e o científico
conviveram sem conflitos na mente humana. Com o
28 - excedente econômico trazido pelo desenvolvimento
tecnológico, as sociedades primitivas deram-se ao luxo de
ter indivíduos dedicados a tarefas específicas. Mesmo
31 - depois disso, com as tarefas práticas entregues a certos
indivíduos, enquanto outros se dedicavam a rituais e
magia, a fé e a razão continuaram como campos
34 - complementares da experiência humana.
Veja, ano 42, n.º 6, 14/1/2009, p. 88 (com adaptações)