País do faz-de-conta
24/07/2008
Durante minhas breves semanas de descanso, alguns leitores me escreveram
"encomendando" artigos sobre a lei seca e o caso Daniel Dantas. Para não
descontentar ninguém, arrisco uma manobra temerária: vou comentar os dois
assuntos valendo-me de uma mesma chave interpretativa que me parece
especialmente valiosa para entender o Brasil de hoje.
Comecemos pela lei seca. Como ferrenho entusiasta daquilo que se convencionou
chamar de liberdades, defendo até as últimas conseqüências o direito das pessoas
de embriagar-se, drogar-se e fazer tudo o que bem entenderem com seus próprios
corpos e mentes. Ainda assim, o conceito por trás da lei seca é inatacável: você
tem o direito de beber até cair; mas, para tanto, precisa renunciar
momentaneamente a outros direitos, como o de dirigir veículos automotores ou
operar máquinas pesadas, posto que fazê-lo com reflexos e capacidade de
decisão diminuídos pelo álcool representa um risco para terceiros. Cada qual é
livre para submeter-se a qualquer nível de perigo que julgue conveniente, mas não
para impor essa decisão individual a outras pessoas.
Para aqueles que insistem muito em manter seu direito de beber e dirigir
simultaneamente sugiro que organizemos em autódromos corridas a ser
disputadas exclusivamente por motoristas bêbados. Só participa quem quer e
nenhum incauto é apanhado de surpresa. Seria uma forma inteligente de conciliar
máxima liberdade e os ditames da razoável segurança social.
Apesar dessa defesa forte da filosofia por trás da lei seca, a norma como foi escrita
encerra dois vícios nacionais: competência de menos e amor demais pelo
marketing. Em termos exclusivamente técnicos, a nova regra, enunciada na lei nº
11.705, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), é um desastre. Em vez
de endurecer a punição a infratores, como aparenta fazer, ela poderá abrir uma
avenida para que escapem à sanção.
Falo especificamente da nova redação do artigo 306 do CTB, que prevê a
detenção. Aqui, o legislador inadvertidamente modificou o tipo penal, que passou
de conduzir veículo "sob a influência de álcool" para "com concentração de álcool
por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas".
Ocorre que há farta jurisprudência estabelecendo que nenhum cidadão é obrigado
a produzir prova contra si mesmo. Assim, se o motorista recusar-se a soprar o
bafômetro ou ceder sangue para análise laboratorial, não haveria como provar que
ele excedeu a quantidade máxima tolerada. Testemunhas capacitadas e com fé
pública até podem assegurar que o sujeito estava bêbado como um gambá, mas
não que ele excedeu os tais 6 dg/l. E, sem prova competente, não pode haver
crime.
Em relação à multa e suspensão da carteira de motorista, sanção administrativa
prevista no art. 165, o problema não se coloca, pois ali o tipo infracional
permanece enunciado como "dirigir sob influência", fato em princípio aferível por
policiais, médicos legistas e até cidadãos comuns.
O que mais me incomoda, entretanto, é o grande teatro que se montou neste caso.
Dirigir embriagado era proibido no Brasil mesmo antes da edição da nova regra.
Se muitos motoristas não observavam a norma, é principalmente porque a polícia
não a implementava. A aparentemente notável redução de acidentes de trânsito
proporcionada pela lei seca se deve muito mais ao surgimento da fiscalização do
que à mudança nos limites para a alcoolemia e nas penas.
Até acho que operações de marketing legal têm o seu valor, à medida que levam
rapidamente a um grande número de pessoas a mensagem embutida na nova
legislação. O meu receio, porém, é o de que estejamos diante de mais uma
pirotecnia de efeitos limitados. Espero estar errado, mas não há nada a sugerir
que a recente disposição fiscalizatória veio para ficar. O mais provável é que,
dentro de alguns meses ou anos, já ninguém mais fale em lei seca, e as taxas de
acidentes com participação do álcool voltem à "normalidade". Foi assim, por
exemplo, com as punições "mais duras" previstas no CTB, que começou a vigorar
em janeiro de 1998 e cujo efeito novidade já parece ter-se esgotado.
Mais ou menos o mesmo ocorre com o caso Daniel Dantas. A minha sensação é a
de que nossas autoridades, em vez de combater o crime"comme il faut",istoé,
processando e condenando seus autores, preferem fazê-lo através de reportagens
de TV.
Já que coletar provas, instruir um processo e enfrentar os intricados percalços da
Justiça brasileira dá trabalho e leva muito tempo, policiais e promotores parecem
ter trocado o "due process of law" (devido processo legal) pelos refletores da
mídia. Desde que alguns poucos tubarões grandes possam aparecer algemados
em portentosas operações da PF transmitidas em programas noticiosos a,
dispensa-se a boa instrução processual.
Nada tenho contra um pouco de teatro. A impunidade também se combate através
do chamado efeito demonstração. Mas não podemos nos contentar com algumas
dúzias de prisões preventivas que depois não se traduzem em condenações. O
risco é que o crime compense. Se a punição para uma gestão fraudulenta que
renda alguns bilhões de reais a seus autores não for mais que uns poucos dias de
cadeia entre a prisão preventiva/provisória e a concessão do"habeas corpus",
então delinqüir passa a valer à pena. De novo, espero estar errado, mas o meu
temor é o de que a Polícia Federal tem sido mais eficiente em escolher nomes
pomposos para suas operações do que em fazer direito seu trabalho de
investigação e coleta de provas.
Podemos, é claro, matizar esse meu ceticismo recordando que, até alguns anos
atrás, as mais de três dezenas de milhares de mortes anuais no trânsito eram tidas
como um fato da vida e que os chamados criminosos de colarinho branco não
eram perseguidos nem de verdade nem de mentirinha. Sob essa perspectiva, o
teatrinho que agora começamos a encenar já representa um avanço. Quem sabe
em mais algumas décadas as coisas funcionem de verdade e o espetáculo dê
lugar a conseqüências mais perenes. A vida, afinal, imita a arte.
PS - Fui contemplado com uma bolsa para passar o ano acadêmico de 2008-2009 como
"fellow"na Universidade de Michigan e estou de mudança com minha família para os EUA.
Precisarei, portanto, suspender temporariamente a coluna até que esteja instalado em Ann
Arbor. Assim que possível, eu a retomarei com freqüência quinzenal.
Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u425392.shtml>