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É evidente que o comportamento ético humano tem
um grau de elaboração e complexidade que o torna
distintamente humano e não apenas uma cópia daquilo
que outras espécies têm ao seu dispor. As regras da ética
criam obrigações especificamente humanas para qualquer
indivíduo normal que as conheça, e, é claro, a codificação
das regras é exclusivamente humana. Quanto às narrativas
que se construíram em torno das situações e das regras,
são também exclusivamente humanas. No fundo não é
assim tão difícil conciliar a percepção de que uma parte da
nossa estrutura biológica e psicológica tem raízes não
humanas com a noção de que a nossa compreensão
profunda da condição humana confere a essas estruturas
uma dignidade única.
A construção a que chamamos ética deve ter
começado como um programa geral de regulação biológica.
O embrião dos comportamentos éticos deve ter sido mais
uma etapa na progressão que inclui os mecanismos não
conscientes e automatizados que nos permitem regular o
metabolismo, ter pulsões e motivações e sentimentos dos
mais diversos tipos. Não é difícil imaginar a emergência da
justiça e da honra a partir de práticas de cooperação. Um
aspecto particular das emoções sociais, aquele que se
exprime sob a forma de comportamento dominante ou
submisso no interior de um certo grupo, teria tido também
um papel importante nos processos de negociação que
definem a cooperatividade.
Para que não se pense que a evolução e a sua
bagagem de genes têm tido sempre um papel maravilhoso
e nos trouxeram todos esses magníficos dispositivos, é
hora de salientar que todas as emoções positivas de que
venho falando, e que o altruísmo a que me referi, dizem
respeito ao grupo. Em termos humanos, exemplos de
grupos incluem a família, a tribo, a cidade e a nação. Para
aqueles que estão fora do grupo, a história revolucionária
das reações emocionais é bem menos amável. As emoções
simpáticas podem muito facilmente tornar-se
desagradáveis e brutais quando são dirigidas para fora do
círculo a que naturalmente se destinam. O resultado é bem
sabido: raiva, ressentimento, violência, todas as reações
que facilmente reconhecemos como embriões possíveis dos
ódios tribais, do racismo e da guerra.
Esta é também a hora de recordar que os mais
recomendáveis comportamentos humanos não são
necessariamente impressos nos circuitos neurais sob o
controle do genoma. A história de nossa civilização é, de
certo modo, a história de uma tentativa de oferecer os
melhores dentre os nossos sentimentos morais a círculos
cada vez mais amplos da humanidade, para além das
restrições do grupo, de forma a abranger, eventualmente,
a humanidade inteira. É claro que estamos muito longe de
atingir esse ideal.
António Damásio. Em busca de Espinosa. São Paulo:Companhia das Letras, 2004 (com adaptações).
Acerca dos sentidos do texto, assinale a alternativa correta.