Fernando Pessoa
Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme ...
Como alguém que durma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair.
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos ...
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei por que – eu não tinha medo –
Pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém ...
Ah! É que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou ...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquilamente, como o muro do quintal;
Tendo ideias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor ...
Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa
Bárbara ...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
(Obra Poética. Editora José Aguiar Ltda., Rio de
Janeiro, 1960)