Para responder às questões de 1 a 4, leia o texto abaixo.
90 por cento de certeza
Cronistas esportivos e cientistas políticos não se satisfazem
mais em emitir sua opinião. Têm que dar números, cifras,
palpites estatísticos e prognósticos
Tevê ligada, ouço o comentarista esportivo dizer: “Tenho 90% de
certeza de que o time tal não se classifica para a Libertadores.”
Pausa:................................................................................................ .
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(Essa lacuna acima não é só um recurso para ganhar espaço –
embora isso não seja má ideia quando se tem de tirar um texto
de três mil toques da cartola –, mas para tentar expressar o meu
silêncio mudo e espantado diante de tal afirmação.)
Meu Deus, quanta filosofia! Sim, sim, filosofia pura – o homem
tinha 90% de certeza. Vejam bem, não 70, 80 nem 100, mas
precisamente 90% de certeza. Consideremos que a certeza
humana sobre determinado assunto possa compreender de fato
integrais 100%. Então o sujeito estaria muito próximo da razão
plena, seria quase um clarividente. Em meu raciocínio lógico, óbvio
e ululante, deduzo que, com mais 10% de certeza, ele teria então
a certeza total, absoluta, irrefutável. Ora, ninguém pode ter 100%
de certeza em nada, nem mesmo 90. 10%, vá lá, talvez possa ser
aceitável. Por quê? – perguntará o leitor. Porque toda certeza tem
a sombra da dúvida, apesar da existência da sonora e bela
expressão popular “sem sombra de dúvida”.
Ela, a sombra da dúvida, está sempre lá. Nunca se sabe
completamente tudo sobre algo, nunca se está totalmente seguro
e confiante em relação a nada. Nunca saberemos quemmente
ou fala a verdade (às vezes nem nós mesmos sabemos sobre
nós), se Tom Cruise é bom ator ou canastrão, se determinada
memória foi sonho ou realidade, se o mundo acabará em dezembro
deste ano, se eram os deuses astronautas, se Paulo Coelho faz
mesmo chover, se Shakespeare existiu ou, caso tenhaexistido,
se era mulher ou homem, se Carminha será punida no último
capítulo da novela... Entre a certeza e a dúvida, há milhares de
nuances possíveis que embaralham os sentidos. Tudo está sempre
sob suspeita e, nessa toada, nem Deus, representante sobrenatural
do Absoluto, escapa da dúvida e da incerteza humanas – aí estão
os ateus que não me deixam mentir.
Ok, mas o cara tinha 90% de certeza quanto a um prognóstico
esportivo. Ora, no esporte então, e no futebol especialmente, a
dúvida é um componente quase tão importante quanto a expertise
do atacante ou a falha fatal do zagueiro. Quantos adversários mais
fracos já venceram outros incrivelmente mais fortes– ocorrência
que ganhou a zoológica e simpática alcunha de “zebra”; quantos
craques falharam na hora extrema e quantos cabeças de bagre
se consagraram por acaso ou destino; quantos times tidos como
favoritos ficaram no meio do caminho, os chamados “cavalos
paraguaios”; quantos goleiros infalíveis entraram para a história
como “frangueiros” por conta de um lapso banal e definitivo...
Uma certa necessidade de precisão parece ser um valor de nossa
época. Cronistas esportivos, cientistas políticos, âncoras de
telejornal, articulistas, críticos e espécimes similares não se
satisfazem mais em apenas emitir sua opinião sobre as matérias
em questão. Têm que dar números, cifras, palpites estatísticos e
prognósticos certeiros nesses tempos de profetas dequiosque.
Meu caro comentarista, peço que ensine a nós, mortais, como
sermos capazes de ostentar 90% de certeza sobre o que quer
que seja. A humanidade agradece, endividada, sua dica metafísica.
Sem sombra de dúvida.