Há dessas reminiscências que não descansam antes que
a pena ou língua as publique. Um antigo dizia arrenegar de
conviva que tem memória. A vida é cheia de tais convivas, e
4 - eu sou acaso um deles, conquanto a prova de ter a memória
fraca seja exatamente não me acudir agora o nome de tal
antigo; mas era um antigo, e basta.
7 - Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário,
é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias,
sem guardar delas nem caras nem nomes; e somente raras
10 - circunstâncias. A quem passe a vida na mesma casa de
família, com os seus eternos móveis e costumes, pessoas e
afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e
13 - repetição. Como eu invejo os que não esqueceram a cor das
primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que
enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro
16 - essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão.
E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se
emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos
19 - livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não
me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os
olhos e evocar todas as coisas que não achei nele. Quantas
22 - idéias finas me acodem, então! Que de reflexões profundas!
Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas,
todos me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores,
25 - os seus altares; e os generais sacam das espadas que tinham
ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no
metal, e tudo marcha com uma alma imprevista.
28 - É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo.
Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também
preencher as minhas.
Machado de Assis. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 79