Tomemos um exemplo simples: o do romance Senhora, de José de Alencar.
Ele possui certas dimensões sociais evidentes, cuja indicação faz parte de qualquer estudo, histórico ou crítico: referências a lugares, modas, usos; manifestações de atitudes de grupo ou de classe; expressão de um conceito de vida entre burguês e patriarcal. Apontá-las é tarefa de rotina e não basta para definir o caráter sociológico de um estudo.
Mas acontece que, além disso, o próprio assunto repousa sobre condições sociais que é preciso compreender e indicar, a fim de penetrar no significado. Trata-se da compra de um marido; e teremos dado um passo adiante se refletirmos que essa compra tem um sentido social simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes na época, como o casamento por dinheiro. Mas, ao vermos isto, ainda não estamos nas camadas mais fundas da análise, − o que só ocorre quando este traço social constatado é visto funcionando para formar a estrutura do livro.
Se, pensando nisto, atentarmos para a composição de Senhora, veremos que repousa numa espécie de longa e complicada transação, − com cenas de avanço e recuo, diálogos construídos como pressões e concessões, um enredo latente de manobras secretas, − no correr da qual a posição dos cônjuges se vai alterando.
Referindo esta verificação às anteriores, feitas em nível mais simples, constatamos que se o livro é ordenado em torno desse longo duelo, é porque o duelo representa a transposição, no plano da estrutura do livro, do mecanismo da compra e venda. Esta não é afirmada abstratamente pelo romancista, nem apenas ilustrada com exemplos, mas sugerida na própria composição do todo e das partes, na maneira por que organiza a matéria, a fim de lhe dar uma certa expressividade.
(Adaptado de: CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 16)