Comentário do prof Gustavo Barchet (ex-Procurador Judicial do Município de Recife/ PE. Exerceu até 2003 o cargo de Auditor-Fiscal da Receita Federal, para o qual logrou aprovação em 1º lugar nacional na Área de Tributação e Julgamento)
A rubrica entidades de cooperação com o Poder Público abrange as entidades paraestatais, as quais podem ser definidas como pessoas jurídicas de direito privado, não integrantes da Administração Pública, que desenvolvem atividades de interesse público sem intuito lucrativo, em função do que recebem do Estado alguma forma de incentivo.
Trata-se de entidades instituídas por particulares para o desempenho de alguma atividade não exclusiva de Estado, mas de interesse da coletividade, como assistência social ou saúde, o que faz com que tais entidades, em regra, recebam alguma espécie de incentivo do Poder Público para desenvolverem suas atividades, como a permissão de uso gratuito de bens públicos ou o repasse de recursos orçamentários. O fato de gozarem de tais incentivos torna tais entidades alvo de um especial controle pela Administração, bem como pelo Tribunal de Contas, além de ter seu regime jurídico preponderante, de direito privado, parcialmente derrogado por disposições de direito público.
As entidades paraestatais compõem o denominado Terceiro Setor, formado por entidades externas à Administração que atuam em áreas de interesse público e que não têm como finalidade a busca do lucro. Este setor coexiste com o Primeiro Setor, que corresponde ao próprio Estado, e com o Segundo Setor, que é formado pelas empresas privadas com interesse lucrativo (o mercado).
Uma das consequências imediatas da redução das áreas de atuação direta do Estado promovida pelos arautos da Reforma Administrativa foi o significativo incremento das entidades paraestatais, tanto em termos quantitativos como qualitativos. Além se serem criadas inúmeras entidades desta natureza em nossa história recente, foi ampliado em muito seu leque de atuação. Este resultado não é inesperado, desenvolvendo-se dentro de um processo de privatização de determinados atividades de interesse coletivo, um dos objetivos da Reforma.
Dentro do gênero entidades paraestatais, compondo o Terceiro Setor, enquadram-se precipuamente os serviços sociais autônomos, as organizações sociais (OS) e as organizações da sociedade civil de interesse coletivo (OSCIP). Maria Sylvia Zanella di Pietro acresce ao rol as entidades declaradas de utilidade pública, as que recebem certificados de fins filantrópicos e as entidades de apoio.
Após essa visão panorâmica das entidades paraestatais, vamos tratar propriamente do ponto cobrado na questão, a saber, qual entidade paraestatal pode resultar “de extinção de entidade integrante da Administração Pública Indireta”, como consta no enunciado.
De pronto, vamos adiantar a resposta: trata-se das organizações sociais.
As organizações sociais são pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que adquirem tal qualificação jurídica por meio da celebração de um contrato de gestão com o Poder Público, a fim de desempenharem serviços sociais não privativos do Estado, contando para isso com o auxílio deste, mediante permissão de uso de bens públicos, destinação de recursos orçamentários, cessão especial de servidores, dispensa de licitação nos contratos de prestação de serviços relacionados às atividades contempladas no contrato de gestão, entre outras formas de incentivo.
Não se tratam as organizações sociais de uma nova figura jurídica, mas apenas de uma qualificação especial conferida a determinadas entidades paraestatais, mediante o preenchimento de certos requisitos legais, ao celebrarem um contrato de gestão.
Não integram a Administração Pública, como já dito, nem são delegatárias de serviço público, pois prestam serviços não exclusivos do Estado. Só se fala em delegação de serviços públicos quando a atividade em questão é exclusiva de dada esfera de Governo. Além, disso, a delegação nas modalidades concessão ou permissão sempre pressupõe prévia licitação, de acordo com o art. 175 da CF, e a outorga da qualificação de organização social a uma entidade independe de qualquer procedimento licitatório. Enfim, devemos considerar as organizações sociais como pessoas jurídicas de direito privado que realizam, em seu próprio nome, atividades de interesse coletivo não-privativas de certa pessoa política, e que, portanto, podem ser desempenhadas independentemente de delegação do Poder Público.
A nível federal, essa espécie de entidade foi mencionada pela primeira vez quando da elaboração do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, aprovado no âmbito do Poder Executivo Federal em 1995. A nível legislativo, na esfera federal a matéria é regulada pela Lei 9.637/98.
Não obstante a Lei e o Plano Diretor falarem em Programa Nacional de Publicização, as organizações sociais devem ser compreendidas como uma das formas de privatização de serviços de interesse público. Ou seja, serviços até então prestados diretamente pelo Estado, tais como saúde e educação, poderão ser paulatinamente transferidos à iniciativa privada, mediante a celebração de contratos de gestão. Enfim, as organizações sociais substituirão o Poder Público no desempenho dessas atividades, com a conseqüente extinção dos órgãos e entidades da Administração até então atuantes.
Pesquisando-se alguns dispositivos da lei federal, podemos ter uma clara noção da proximidade dessas entidades com a Administração. Exemplificativamente, podemos citar:
- os art. 2º e 3º, que, dentre outras disposições, estabelecem como requisito para a outorga da qualificação ter a entidade seu órgão colegiado de deliberação superior composto, na maioria, por representantes do Poder Público e membros de entidades da sociedade civil, de notória capacidade profissional e idoneidade moral;
- o mesmo art. 2º, que condiciona a outorga da qualificação ao aval do Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão (apesar de a Lei 9.637/98 mencionar o Ministro do Estado da Administração Federal e Reforma do Estado, o Ministério em questão foi extinto pela MP 1.795/99, sendo suas atribuições transferidas para o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão). Inegavelmente, a presença do titular da pasta ministerial responsável pela organização da Administração Federal é indício de que as organizações exercerão um importante papel estratégico na implementação de certas políticas públicas; e
- o art. 14, que faculta ao Poder Executivo a cessão especial de servidor público para as organizações sociais, permanecendo com o Poder Público o ônus da remuneração.
A fim de encerrar qualquer dúvida na matéria, transcrevemos alguns dispositivos finais da Lei 9.637/98, onde se evidencia o objetivo do Governo Federal com as organizações sociais.
Art. 18. A organização social que absorver atividades de entidade federal extinta no âmbito da área de saúde deverá considerar no contrato de gestão, quanto ao atendimento da comunidade, os princípios do Sistema Único de Saúde, expressos no art. 198 da Constituição Federal e no art. 7o da Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990.
Art. 19. As entidades que absorverem atividades de rádio e televisão educativa poderão receber recursos e veicular publicidade institucional de entidades de direito público ou privado, a título de apoio cultural, admitindo-se o patrocínio de programas, eventos e projetos, vedada a veiculação remunerada de anúncios e outras práticas que configurem comercialização de seus intervalos.
Art. 20. Será criado, mediante decreto do Poder Executivo, o Programa Nacional de Publicização - PNP, com o objetivo de estabelecer diretrizes e critérios para a qualificação de organizações sociais, a fim de assegurar a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União, que atuem nas atividades referidas no art. 1o, por organizações sociais.
Pelo exposto, podemos tranquilamente concluir: a instituição das organizações sociais tem por objetivo precípuo a extinção de órgãos e entidades integrantes da Administração Pública.