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Um ano de ausência
A porta aberta, você dava logo de cara com um azulejo
na parede: “Aqui mora um solteiro feliz”. Uma pitada de humor
com um toque popular. Essa graça espontânea que a tudo dá
gosto. Do contrário, a vida é só enfado e mormaço. Era de fato
um solitário. Precisava de ser só. Nisso, sua personalidade era
feita de uma peça só. Incapaz de simulação, ou até, em certos
casos, de uma ponta de hipocrisia que se debita à polidez social.
Nunca vi solitário de porta tão aberta. Nesse sentido,
falando de Minas, do tempo em que lá viveu, observava o recato,
a quase avareza com que os mineiros tratam o forasteiro.
Talvez por isso nunca se esqueceu de um almoço em Caeté,
que lhe deu uma página antológica do ponto de vista das duas
artes ? a culinária e a literária. Sendo de um temperamento
encolhido, sobretudo na mocidade, gostava desse clima de
intimidade que cria laços de confiança e amizade para sempre.
À primeira vista, ou de longe, parecia, sim, o que os
franceses chamam de um urso. Sempre metido consigo mesmo,
fabricava o seu próprio mel. Espécie de ruminante, que se
alimentava da matula que traz de nascença. Fugia da cilada
sentimental, ou da emoção, pelo atalho do senso de humor. Sabia
manejar a lâmina da ironia, nunca a usava a seco. Sempre
compensada por uma tirada de forte teor humano. Horror ao
pedantismo, à afetação. Não impostava a voz, nem a pena.
Talvez tivesse qualquer coisa de bicho, esse homem
sensível à beleza fugaz deste mundo. Na sua relação com
a natureza, não havia intermediação de ordem intelectual. O coração
da vida pulsava no seu coração. Era um ser livre e lírico.
Seu claro olhar de sabedoria espiava o Brasil com algum tédio.
País sem jeito, que trata mal as crianças e os pobres. O sentimento
de justiça sem apelo ideológico. Muito antes do modismo conservacionista,
pleiteou a causa do macaco carvoeiro e de todo e qualquer ser
ameaçado. Tinha uma disponibilidade fundamental para ver e escrever. Um
senhor poeta, o cronista Rubem Braga.
(Adaptado de: Otto Lara Resende. Bom dia para nascer: crônicas publicadas na Folha de S.Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011, p. 259 e 260)
Rubem Braga é caracterizado pelo autor como um: