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Casamento na UTI
Era uma tarde tranquila, um daqueles raros momentos em que a frágil quietude da UTI, com pacientes gravemente estáveis, parecia antever uma situação caótica como uma parada cardíaca, uma intubação ou qualquer outro procedimento de urgência.
A equipe mantinha a rotina de trabalho, seriedade mesclada por momentos de descontração, carinho e cuidado dispensados aos 18 leitos da unidade. Aquela tarde revelaria uma cena que ficaria para sempre na memória. E não seria nenhum diagnóstico revelador, uma conduta heroica ou tratamento inovador.
O leito 4.056 era ocupado por dona Terezinha, doente cardiopulmonar grave que há poucos dias respirava por uma máquina e ainda mantinha aquela aparência de quem viu a morte de perto. Muito fraca, dependia de um balão de oxigênio e de constantes exercícios de fisioterapia respiratória. No dia anterior, disse que iria se casar. Como já era casada há 40 anos com seu Damásio, pensamos tratar-se de um quadro de delírio.
Pouco antes do horário de visita à UTI, chega o capelão do hospital com trajes diferentes do habitual. Sobre o jaleco branco e surrado, usava uma vistosa estola sacerdotal, tão comprida que quase tocava o chão.
Ao seu lado vinha seu Damásio, barba bem feita, roupas simples, mas arrumadas, camisa para dentro da calça e sapatos brilhantes. Tinha um brilho no olhar como se vestisse linho ou puro seda.
Dona Terezinha usava um pijama novo trazido pelas auxiliares de enfermagem. Escolheram peças em que o símbolo do hospital ainda não havia sido apagado pelo vapor das caldeiras. Os cabelos bem penteados estavam emoldurados pelo cateter verde transparente de oxigênio. No quarto arrumado para a ocasião não havia comadres no canto, mas um aparelho de ventilação mecânica preparado para o uso. A noiva poderia precisar dele a qualquer momento.
Tudo pronto, cadeiras emparelhadas, mãos dadas, uma flor improvisada pela auxiliar de leito e madrinha, alianças emprestadas pelo fisioterapeuta e padrinho.
Naquele sagrado momento, nós da equipe representávamos os filhos, netos, vizinhos, conhecidos, amigos e irmãos. Parecia que estávamos em uma capela decorada para uma festa. Estáticos, ouvíamos o padre, aturdidos pela singeleza do momento. As lágrimas derramadas pela quase totalidade da audiência revelaram a emoção presente. Nunca as palavras ‘’na alegria e na tristeza, na saúde e na doença’’ soaram tão sinceras; nunca a frase “até que a morte nos separe’’ provocou tanta comoção. A voz fraca e cansada era interrompida pelo choro, as lágrimas eram recolhidas pelo largo sorriso daquele rosto enrugado. Nas mãos trêmulas e roxas pelas marcas de sete dias de internação em UTI, a aliança insistia em não se encaixar nos dedos inchados.
O técnico do Raio X passou por nós sem muito interesse. Deixou de fazer a radiografia naquele quarto e foi para o seguinte. A bênção foi impetrada, rezamos juntos e os noivos se beijaram. Poses para a foto. Como a noiva estava muito fraca, o noivo jogou o buquê, logo apanhado pela madrinha. Aplaudimos com discrição e cumprimentamos os nubentes.
Voltamos para rotina dos prontuários, exames e prescrição com uma sensação diferentes e o coração aquecido.
Rodrigo Pena de Almeida, revista Ser Médico, nº 37/2006.
O texto em questão classifica-se como um gênero textual bastante conhecido. Marque a alternativa correta.