A “CRISE” DOS VALORES MORAIS.
Fala-se hoje, em toda parte e no Brasil, numa “crise” dos valores morais. O sentimento dessa crise expressa-se na linguagem cotidiana, quando se lamenta o desaparecimento do dever-ser, do decoro e da compostura nos comportamentos dos indivíduos e na vida política, ao mesmo tempo em que os que assim julgam manifestam sua própria desorientação em face de normas e regras de conduta cujo sentido parece ter-se tornado opaco. Uma autora sueca, Sissela Bok, decidiu escrever um livro sobre a mentira, após ter verificado que, desde o século XVII, excetuando-se alguns momentos da literatura, do teatro e do cinema, reina o silêncio quanto aos dilemas do dizer-a-verdade na vida privada e na vida pública. Sociólogos de linha durkheimiana, examinando o desamparo dos indivíduos nas escolhas morais, a presença de práticas e comportamentos violentos na sociedade e na política, a multiplicidade de atitudes transgressoras de valores e normas, falam em anomia, isto é, na desaparição do cimento afetivo que garante a interiorização do respeito às leis e às regras de uma comunidade.
Na filosofia contemporânea a “crise” transparece na existência simultânea de três linhas principais de pensamento sobre a ética, resumidas por Agnes Heller: a niilista (baseada no relativismo historicista e na etnografia), que nega a existência de valores morais dotados de racionalidade e de universalidade; a universalista-racionalista (de origem iluminista), que afirma a existência de uma normatividade moral com valor universal porque fundada na razão; e a pragmática, que considera que a democracia liberal tem sido capaz de manter com suficiente sucesso os princípios morais da liberdade e da justiça no que tange às grandes decisões sobre a vida coletiva. Em nosso cotidiano, lembra A. Heller, somos bombardeados pelos três pontos de vista, ainda que se excluam reciprocamente, e sua presença simultânea constitui o sintoma do que chamamos de “crise” dos valores morais.
Alguns procuram nomear a “crise” dando-lhe o nome de pós-modernidade. A modernidade, nascida com a Ilustração, teria privilegiado o universal e a racionalidade; teria sido positivista e tecnocêntrica, acreditado no progresso linear da civilização, na continuidade temporal da história, em verdades absolutas, no planejamento racional e duradouro da ordem social e política; e teria apostado na padronização dos conhecimentos e da produção econômica como sinais da universalidade. Em contrapartida, o pós-modernismo privilegiaria a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras da cultura; teria afirmado o pluralismo contra o fetichismo da totalidade e enfatizado a fragmentação, a indeterminação, a descontinuidade e a alteridade, recusando tanto as “metanarrativas”, isto é, filosofias e ciências com pretensão de oferecer uma interpretação totalizante do real, quanto os mitos totalizadores, como o mito futurista da máquina, o mito comunista do proletariado e o mito iluminista da ética racional e universal.
Se a modernidade havia se caracterizado pela confiança iluminista na razão como força que libera o homem do medo causado pela ignorância e pela superstição, a pós-modernidade proclama a falência da razão para cumprir a promessa emancipatória e exibe sua força opressora sobre a natureza e sobre os homens (...).