As categorias da ética
A vida humana se caracteriza por ser fundamentalmente ética. Os conceitos éticos "bom" e "mau" podem ser predicados a todos os atos humanos, e somente a
estes. Isso não ocorre com os animais brutos. Um animal que ataca e come o outro não é considerado maldoso, não há violência entre eles.
Mesmo os atos de caráter técnico podem ser qualificados eticamente. Esses atos sempre servem para a expansão ou limitação do ser humano. Sob a perspectiva
ética, o que importa nas ações técnicas não é a sua trama lógica, adequada ou eficiente para obter resultados, mas sim a qualificação ética desses resultados.
A eficiência técnica segue regras técnicas, relativas aos meios, e não normas éticas, relativas aos fins. A energia nuclear pode ser empregada para o bem ou para o
mal. Na verdade, ela é investigada, apurada e criada para algum resultado, que lhe confere validade. Não vale por si mesma, do ponto de vista ético. Pode valer
pela sua eventual utilidade, como meio; mas o uso de energia nuclear, para ser considerado bom ou mau, deve referirse aos fins humanos a que se destina.
Vê-se, pois, que o plano ético permeia todas as ações humanas. Isso ocorre porque o homem é um ser livre, vocacionado para o exercício da liberdade, de modo
consciente. Sem liberdade não há ética. A liberdade supõe a operação sobre alternativas; ela se concretiza mediante a escolha, a decisão, a consciência do que se
faz. Isso implica refugir à determinação unilinear necessária, à determinação meramente causal. É a afirmação da contingência, da multiplicidade. Diante da
multiplicidade de caminhos a nossa disposição, avaliamos e escolhemos.
Na verdade, somos obrigados a escolher. Somos obrigados a exercer a liberdade. Assim, a decisão supõe a possibilidade e, paradoxalmente, a necessidade de
estimar as coisas e as ações humanas para atender as nossas demandas; supõe a avaliação de múltiplos fatores que perfazem uma situação humana complexa. Aí,
portanto, temos também compreendida a esfera do valor. Não há liberdade sem valoração. Essa esfera, entretanto, é muito ampla, pois envolve não só o mundo da
ética, mas também o da utilidade, da estética, da religião etc.
Sob o ângulo especificamente ético, não haverá escolha, exercício da liberdade, definição ética quando não houver avaliação, preferência a respeito das ações
humanas. Eis por que na base da ética, como dissemos, encontram-se necessariamente a liberdade e a valoração; a ética só se põe no mundo da liberdade, da
escolha entre ações humanas avaliadas. A escolha, a decisão, que é manifestação de nossa liberdade, só é possível tendo por fundamento o mundo axiológico,
tanto quanto este tem por condição de possibilidade a liberdade. Não se pode estimar sem alternativas possíveis.
Na medida em que se escolhe, se avalia para obter a consciência do que é preferido. Ao escolher um caminho, pondera-se que, de algum modo ou sob algum
prisma, é o melhor em relação a outro; o caminho escolhido mata outras possibilidades. Na escolha não pode haver indiferença. Ela está dirigida à ação, à
exteriorização, à tomada de posição. Isto significa que a escolha, a decisão, nos leva à determinação normativa ou imperativa de uma via em detrimento de outra.
O mundo oferece resistências e determinações necessárias e, por meio destas, as ações éticas se realizam precisamente enquanto as contrariam. As ações éticas
brilham justamente quando se opõem às tendências "naturais" do homem. Assim, a liberdade não só se contrapõe à necessidade, como sua negação, mas também
existe em função desta. Não há liberdade sem necessidade. Não há ética sem impulsão, sem desejo. A melhor prova da liberdade é o esforço de superação da
necessidade, afirmando-a e negando-a dialeticamente, a um só tempo. Então, o mundo ético só é possível no meio social, no bojo das determinações sociais.
O fenômeno ético não é um acontecimento individual, existente apenas no plano da consciência pessoal. Isso porque o ente singular do homem só se manifesta,
como ser autêntico, em suas relações universais com a sociedade e com a natureza. Esse fenômeno é resultante de relações sociais e históricas, compreendendo
também o mundo das necessidades, da natureza. A ética só existe no seio da comunidade humana.
Os homens ou grupos de homens que controlam a produção e os meios de circulação econômica dos bens possuem maior liberdade do que aqueles que não têm o
poder desse controle. Por aí se vê também que a liberdade e a ética não se reduzem a fenômenos meramente subjetivos; elas têm sempre dimensões sociais,
históricas e objetivas.
Há, assim, um grande esforço, um esforço ético-político para se obter uma distribuição igualitária dos direitos entre os homens, quer dentro das comunidades,
quer entre as comunidades. Na verdade existe uma ética sobre a ética, uma meta-ética. A meta-ética é utópica, crítica, subversiva e transcende as condições mais
imediatas da vida social. No entanto, ela precisa ser possível no mundo dos fatos sociais, sob pena de se perder como uma utopia de meros sonhos.
(Adaptado de ALVES, Alaôr Caffé. In: www.centrodebate.org)